domingo, setembro 09, 2007

As soluções de Fermi1

Hans Chistian Baeyer

Do College of William and Mary


Às cinco horas e vinte e nove minutos da madrugada de uma segunda-feira, em julho de 1945, explodia a primeira bomba atômica feita no mundo, no deserto, cem quilômetros a noroeste de Alamogordo, no Novo México. Quarenta segundos depois, a onda de choque da explosão atingia o campo da base, onde estavam os assombrados cientistas que contemplavam o histórico espetáculo. A primeira pessoa a se mexer foi o físico ítalo-americano Enrico Fermi, que estava ali para testemunhar o apogeu do projeto que tinha ajudado a iniciar.

Antes da bomba explodir, Fermi arrancou uma folha de papel de um bloco de notas e rasgou-a em pequenos pedaços. Depois, quando percebeu o primeiro tremor da onda de choque espalhando-se pela atmosfera quiescente, jogou os fragmentos de papel para cima. Os pequeninos fragmentos flutuaram em direção oposta à da nuvem em forma de cogumelo que se erguia no horizonte, e caíram cerca de vinte e três metros para trás. Depois de um cálculo mental rápido, Fermi anunciou que a energia da bomba fora equivalente à provocada pela explosão de dez mil toneladas de TNT. No local, também estavam postos instrumentos sofisticados. As análises das respectivas leituras da velocidade e da pressão da onda de choque, que levaram várias semanas para se completarem, confirmaram a estimativa imediata de Fermi (não se tem certeza de como Fermi a realizou, mas provavelmente foi assim: pela medida da velocidade com que o ar se expandia pela explosão, estimou a energia cinética total dissipada na atmosfera e depois dividiu esta quantidade de energia pela liberada na explosão de uma tonelada de TNT).

A equipe da explosão da bomba ficou impressionada, porém não surpresa, pela brilhante improvisação científica. O gênio de Enrico Fermi era conhecido em todo o mundo da Física. Em 1938 recebeu o Prêmio Nobel pelo seu trabalho na física das partículas elementares e, quatro anos depois em Chicago, provocou a primeira reação nuclear em cadeia sustentada, com o que o mundo entrou na idade das armas atômicas e da geração industrial de energia nuclear. Nenhum outro físico da sua geração, e nenhum outro desde então, foi ao mesmo tempo um experimentador magistral e um teórico de ponta. Em escala de miniatura, os pequeninos pedaços de papel, e a análise do respectivo movimento, exemplificam esta cominação única de talentos.

Como todos os virtuosi, Fermi tinha um estilo próprio. Sua abordagem da Física não suportava oposição; nunca lhe ocorria que pudesse falhar na busca da solução de um problema. Os seus artigos e livros revelam desdém pelos ornamentos – revelam a preferência pela via mais direta para chegar a resposta, e não pela via intelectualmente mais elegante. Ao chegar nos limites da sua acuidade, Fermi completava a tarefa pela força bruta.

Para ilustrar esta abordagem, imaginemos que um físico queira determinar o volume de um corpo irregularmente conformado – o da Terra, por exemplo, que é ligeiramente piriforme. Sem alguma espécie de fórmula, qualquer pessoa pode se sentir bloqueada; há, porém diversas maneiras de conseguir uma delas. A consulta a um matemático é um caminho, mas encontrar um deles que tenha conhecimentos e interesse suficientes para ajudar é, usualmente, difícil. Outro caminho é fazer uma busca na literatura matemática, o que é demorado e possivelmente infrutífero, pois os modelos ideais que interessam aos matemáticos muitas vezes não estão de acordo com os corpos irregulares da natureza. Finalmente, o físico poderia considerar o abandono de todas as pesquisas a fim de deduzir uma fórmula a partir de princípios matemáticos básicos; porém, como é evidente, quem quer que se decidisse a dedicar grande período de tempo à geometria teórica jamais teria se tornado um físico2.

Uma outra maneira seria o físico fazer como Fermi teria feito – calcular numericamente o volume. Em lugar de se apoiar em uma fórmula, o cálculo envolveria a divisão mental do planeta em vários pequenos cubos, cada qual com um volume facilmente determinado pelo produto entre o comprimento, a largura e a altura; a adição das respostas destes problemas mais abordáveis (com o aumento do número de cubos aumentaria a exatidão do cálculo) levaria à estimativa final. Este método leva somente a uma solução aproximada, mas, como não depende de qualquer fórmula desconhecida, levará com certeza ao resultado desejado; era isto que importava a Fermi. Com a introdução, após a Segunda Guerra Mundial, dos computadores e, depois, das calculadoras portáteis, o cálculo numérico se tornou o procedimento padrão da Física.

A técnica de dividir problemas difíceis em problemas menores, mais abordáveis, aplica-se a muitos problemas além dos que se resolvem por cálculo numérico. Fermi era excepcional neste método prático. A fim de ensiná-lo aos seus alunos, desenvolveu um tipo de questão que ficou associado ao seu próprio nome. Um problema de Fermi tem um perfil característico. Ao se escutá-lo pela primeira vez não se tem nem mesmo a mais remota idéia sobre qual poderia ser sua resposta. E nota-se que a informação existente é muito pouca para se encontrar a solução. Porém, quando o problema for dividido em subproblemas, cada qual solúvel sem a ajuda de especialistas ou de livros de referência, pode-se fazer uma estimativa, de cabeça ou rabiscando em qualquer rascunho que pode estar bem próxima da solução exata.

Suponhamos que se queira determinar a circunferência da Terra sem fazer consulta a uma tabela. Vamos imaginar que se saiba a distância, cerca de cinco mil quilômetros, entre New York e Los Angeles, e que a diferença de tempo entre as duas costas oceânicas dos Estados Unidos é de três. Ora, três horas correspondem a um oitavo do dia, e um dia é o tempo necessário para o planeta completar um revolução. Portanto, a circunferência da Terra pode ser estimada como o produto de oito por cinco mil quilômetros, ou seja, quarenta mil quilômetros. No equador, a circunferência da Terra é, na realidade, 40 076km. Nas palavras de John Milton3:


tão fácil parece,
depois de encontrado; o que oculto, para a maioria,
parecia
impossível.


Os problemas de Fermi podem parecer-se com os enigmas estampados nas páginas de revistas de bordo de aeronaves, ou em outras publicações populares (dados três vasos com oito, cinco e três litros de capacidade, respectivamente, com se pode medir exatamente um litro?), mas são de gênero bem diferente. A resposta a um problema de Fermi, em contraste com a dos enigmas, não pode ser verificada por uma dedução exclusivamente lógica, e é sempre aproximada (a fim de determinar com precisão a circunferência da Terra é indispensável que o planeta seja realmente medido). Além disso, para resolver um problema de Fermi, é necessário ter o conhecimento de fatos não mencionados no enunciado do problema (em contraste com isso, a charada dos três vasos tem todas as informações necessárias para a sua resolução).

Estas diferenças indicam que os problemas de Fermi estão mais intimamente ligados ao mundo físico do que os enigmas matemáticos, que raramente têm qualquer coisa de prático a oferecer aos físicos. Nesta mesma linha, os problemas de Fermi lembram dilemas comuns que uma pessoa qualquer encontra diariamente ao longo da vida. Na realidade, os problemas de Fermi, e a forma de resolvê-los, não são apenas essenciais para a prática da Física, mas também são valiosos pela lição que oferecem na arte de viver.

Quantos afinadores de piano devem existir em Chicago? A natureza excêntrica desta pergunta, a impossibilidade de alguma resposta exata, e o fato de Fermi a ter proposto às suas turmas na Universidade de Chicago, elevaram-na ao status de mito. Não há uma solução padrão (e esta é a questão central), mas qualquer um pode fazer hipóteses que levam rapidamente a uma resposta aproximada. Uma delas: se a população da área metropolitana de Chicago for de três milhões de pessoas, se a família média for constituída por quatro pessoas, e se um terço de todas as famílias tiver um piano4, existem 250 000 na cidade. Se cada afinador afinar 4 pianos por dia, 250 dias por ano, totalizando 1 000 afinações por ano, devem existir 25 afinadores na cidade. A resposta não é exata; podem ser 10 ou 50. Mas, conforme uma consulta às páginas amarelas do catálogo de telefones, a resposta está definitivamente dentro do razoável.

A intenção de Fermi era mostrar que, embora no ponto de partida nem mesmo a ordem de grandeza da resposta seja conhecida, é possível avançar com base em hipóteses diferentes e assim chegar a estimativas que estão dentro do intervalo razoável da resposta. A razão desse efeito é a de os terem tendência a se cancelarem mutuamente numa seqüência de cálculos5. É possível admitir, acima, que apenas um sexto das famílias, e não um terço, tenha o seu próprio piano; mas então talvez os pianos tenham que ser afinados a cada cinco anos, e não a cada dez anos. Também é improvável que todos os erros de uma estimativa sejam por falta (ou por excesso), assim como é improvável que uma dada moeda mostre sempre cara (ou coroa), numa série de jogadas. A lei das probabilidades impõe que os desvios em relação às hipóteses corretas tendam a se compensar, de modo que os resultados finais convirjam para o número correto. Uma cautela essencial é a de evitar que um certo viés favoreça os desvios numa ou noutra direção.

Como é natural, os problemas de Fermi propostos aos físicos tratam de átomos e de moléculas, com mais freqüência do que de pianos. A fim de respondê-los, é necessário ter na memória algumas grandezas básicas, como o diâmetro aproximado de um átomo típico ou o número de moléculas de água numa colher de sopa cheia6. Com estas informações, é possível estimar, por exemplo, o desgaste do pneumático de um carro, numa revolução das rodas, em condições normais de tráfego. Vamos admitir que a banda de rodagem tenha a espessura de 1cm e que seja desgastada inteiramente em 60 000km. Se dividirmos 1cm pelo número de voltas feitas por um pneumático típico, com a sua circunferência típica, em 60 000km, a resposta é da ordem de grandeza de um diâmetro molecular.

Um outro problema de Fermi ilustra a imensidão do número de átomos e moléculas que nos rodeiam. O problema é o de provar um teorema denominado “o último suspiro de César” que afirma haver, em qualquer inspiração de qualquer pessoa, pelo menos uma molécula do ar que Júlio César expirou ao morrer. Sob o enunciado escondem-se uma restrição e diversas hipóteses. A restrição é a de o teorema só poder ser aproximadamente correto, pois se baseia em médias. Se uma pessoa inalar três ou quatro vezes, sem encontrar qualquer molécula do ar de César moribundo, não deve ficar desapontada; adiante, irá inalar diversas delas de uma só vez. Uma das hipóteses é a de não terem sido adicionadas moléculas de ar à atmosfera nos dois últimos milênios, nem terem sido tiradas de circulação outras moléculas de ar, em virtude de combinações; o que certamente não é rigorosamente correto. Também se admite que o último sopro de César tenha tido a possibilidade de misturar-se uniformemente com toda a atmosfera, o que também não é hipótese muito realista. Porém, se ambas as hipóteses forem aceitas, o teorema será verdadeiro e poderá ser aplicado também ao último suspiro de Átila, ou de Sócrates ou de Jesus.

O ponto focal da parábola é o de ser imenso o número de moléculas exaladas numa só respiração humana, e também muito grande o número de moléculas na atmosfera terrestre. A fim de provar o teorema, estima-se o volume total da atmosfera e depois divide-se este volume pelo volume de ar nos pulmões. A resposta é o número de pulmões cheios contidos na atmosfera, e este número é aproximadamente igual ao número de moléculas de ar contidas no último suspiro de César. Os dois números são redondamente iguais a um décimo do número de Avogadro, 6 x 1023, que é um número que cada físico tem de cor.

Problemas de Fermi mais momentosos podem ter relação com o programa de energia (o número de células solares necessárias para fornecer uma certa quantidade de eletricidade), ou com a qualidade do ambiente (a quantidade de chuva ácida provocada pela queima de carvão nos Estados Unidos), ou com a corrida armamentista. Os físicos prudentes – que procuram evitar falsas pistas e impasses – operam de acordo com um princípio há muito estabelecido: nunca principiar um cálculo até que se saiba a faixa de valores dentro da qual a resposta procurada deva estar (e, com igual importância, a faixa dentro da qual a resposta provavelmente não estará). Estes físicos abordam todos os problemas como se fossem problemas de Fermi, estimando a ordem de grandeza dos resultados antes de principiar uma investigação mais fundamentada.

Os físicos também usam problemas de Fermi para intercomunicarem-se. Quando se reúnem em anfiteatros de universidades, ou em centro de convenções, ou em restaurantes franceses7, quando descrevem novas experiências ou discutem problemas pouco conhecidos, muitas vezes fazem um exame geral da região, limitando, de forma numérica, a extensão do problema abordado. Os que estão acostumados a enfrentar problemas de Fermi, abordam a experiência, ou o problema proposto, como se lhes pertencessem, e demonstram a compreensão dos princípios físicos subjacentes mediante a realização de cálculos aproximados. Se a conversa for a respeito de um novo acelerador de partículas, os físicos podem fazer uma estimativa do campo magnético necessário; se a questão for a estrutura de um novo cristal, podem estimar o espaçamento entre os respectivos átomos. O objetivo é o de chegar a uma resposta razoável com o dispêndio do menor esforço. É este o espírito de independência que Fermi, possuindo-o em ampla medida, procurava estimular mediante problemas não convencionais.

Problemas a respeito de bombas atômicas, de afinadores de pianos, de pneumáticos de carros, de aceleradores de partículas e de estrutura cristalina têm pouca coisa em comum. Porém, a maneira como são respondidos é a mesma em cada caso e esta maneira pode ser adotada na resolução de problemas fora do campo da física. Quer o problema seja de culinária, de reparo de automóveis, ou de relações pessoais, existem dois tipos básicos de formuladores de respostas. Os de coração fraco buscam a autoridade – livros de referência, patrões, consultores especialistas, físicos, padres – enquanto os de mente independente mergulham no bom senso que possuem, e no conhecimento objetivo que qualquer um dispõe, fazem hipóteses razoáveis e deduzem as soluções originais, evidentemente aproximadas. Com toda certeza, seria tolice fazer neurocirurgia em casa; porém, desafios cotidianos como fazer um molho picante, substituir uma bomba de água, ou resolver uma pendenga familiar, podem ser solúveis com nada mais que um pouco de lógica, bom senso e paciência.

Nem todo mundo confia em abordagens informais. Por exemplo, algumas pessoas ficariam céticas diante da análise de Fermi sobre um ensaio de uma bomba de dois bilhões de dólares, feita com um pequenino punhado de papeluchos. Esta atitude revela menos, talvez, sobre o conhecimento que detêm do problema do que da atitude que assumem diante da vida.

Ao cabo, o valor de se abordarem problemas de ciência, ou da vida cotidiana, pela forma que Fermi adotava está na recompensa de se fazerem descobertas ou invenções independentes. Não importa que a descoberta seja tão importante quanto a determinação do rendimento de uma bomba atômica, ou tão insignificante quanto a estimativa do número de afinadores de pianos numa certa cidade. De certa forma, saber antecipadamente a resposta, ou deixar que uma outra pessoa a encontre, leva a uma frustração; rouba da pessoa o prazer e o orgulho que acompanha a criatividade e despoja o sujeito de uma experiência que, mais do que qualquer outra na vida, reforça a autoconfiança. A autoconfiança, por sua vez, é pré-requisito essencial para resolução dos problemas de Fermi. Assim, tratar dos dilemas pessoais como problemas de Fermi pode iniciar uma reação em cadeia e constituir um hábito que enriquece a vida.


1- Texto extraído na íntegra, com apenas algumas transformações de unidades e correções de tradução, de: TIPLER, P. Física. Horacio Macedo. 3ª edição. Rio de Janeiro, LTC, 1995. Vol. 1, págs. 10 a 12.

2- Trata-se de uma opinião pessoal do autor, portanto pode não ter nada de científico.

3- Poeta e professor de ciências inglês.

4- Para uma típica região metropolitana brasileira essa estimativa seria totalmente diferente, dada a má distribuição de renda da população.

5- Sinceramente não sei se o próprio Fermi concordaria com esta afirmação, muito menos é isto que a teoria dos erros ensina.

6- 1mol de H2O.

7- Ou, no caso dos físicos brasileiros, ao redor de uma mesa de bar mesmo, mas bem que poderia ser ao redor de uma mesa de chá.


Mais informações sobre o assunto:

Enrico Fermi, gênio e simplicidade

University of Maryland Fermi Problems Site

Order of Magnitude Physics

Purcell's numerology handout



PS: as notas de rodapé, obviamente, são minhas. :)

3 comentários:

João Carlos disse...

Na mesma linha, eu recomendo igualmente "O Sr. deve estar brincando, Sr. Feynman" (a não ser pelo preço do livro, que eu achei extorsivo).

O curioso é a coincidência de que "grandes gênios" são pessoas absolutamente comuns, com um único "dom": enxergar com clareza coisas simples, onde a maioria vê um "bicho de sete cabeças".

Kynismós! disse...

João, nunca ri tanto lendo um livro quanto ri com esse livro do Feynman.

Justo, por isso mesmo só transcrevi esse texto a fim de passá-lo a alguns alunos do ensino médio, para que desde já comecem a não ter medo de enfrentar coisas que a primeira vista parecem muito difíceis e até impossíveis. Esse texto mostra a diferença básica entre a matemática e a física.

A "autobiografia" do Feynman foi traduzida três vezes para a língua portuguesa, uma publicada pela Editora Gradiva, a qual suponho que seja boa, já que os portugueses são mais sérios no trato da língua do que nós, outra publicada pela Editora da UNB, a qual contém frases obscuras demonstrando que quem traduziu não era um especialista da área de física, e outra publicada pela Editora Campus, cuja tradução foi feita por um físico brasileiro.

João Carlos disse...

A que eu li, provavelmente, é essa terceira (a última lançada, pois não?...). Mas é simplesmente deplorável que uma tradução com a chancela da UNB não tenha se valido de uma revisão feita por um físico.

Como você sabe, o "forte" do meu Blog é a tradução de artigos. E quantas e quantas vezes me indicaram erros grosseiros de tradução (e eu me considero até um "bom" tradutor...).

Mas, cá entre nós, ler um livro que fala de física em português de Portugal, praticamente obriga a fazer uma nova tradução, à medida em que se lê...