domingo, setembro 09, 2007

As soluções de Fermi1

Hans Chistian Baeyer

Do College of William and Mary


Às cinco horas e vinte e nove minutos da madrugada de uma segunda-feira, em julho de 1945, explodia a primeira bomba atômica feita no mundo, no deserto, cem quilômetros a noroeste de Alamogordo, no Novo México. Quarenta segundos depois, a onda de choque da explosão atingia o campo da base, onde estavam os assombrados cientistas que contemplavam o histórico espetáculo. A primeira pessoa a se mexer foi o físico ítalo-americano Enrico Fermi, que estava ali para testemunhar o apogeu do projeto que tinha ajudado a iniciar.

Antes da bomba explodir, Fermi arrancou uma folha de papel de um bloco de notas e rasgou-a em pequenos pedaços. Depois, quando percebeu o primeiro tremor da onda de choque espalhando-se pela atmosfera quiescente, jogou os fragmentos de papel para cima. Os pequeninos fragmentos flutuaram em direção oposta à da nuvem em forma de cogumelo que se erguia no horizonte, e caíram cerca de vinte e três metros para trás. Depois de um cálculo mental rápido, Fermi anunciou que a energia da bomba fora equivalente à provocada pela explosão de dez mil toneladas de TNT. No local, também estavam postos instrumentos sofisticados. As análises das respectivas leituras da velocidade e da pressão da onda de choque, que levaram várias semanas para se completarem, confirmaram a estimativa imediata de Fermi (não se tem certeza de como Fermi a realizou, mas provavelmente foi assim: pela medida da velocidade com que o ar se expandia pela explosão, estimou a energia cinética total dissipada na atmosfera e depois dividiu esta quantidade de energia pela liberada na explosão de uma tonelada de TNT).

A equipe da explosão da bomba ficou impressionada, porém não surpresa, pela brilhante improvisação científica. O gênio de Enrico Fermi era conhecido em todo o mundo da Física. Em 1938 recebeu o Prêmio Nobel pelo seu trabalho na física das partículas elementares e, quatro anos depois em Chicago, provocou a primeira reação nuclear em cadeia sustentada, com o que o mundo entrou na idade das armas atômicas e da geração industrial de energia nuclear. Nenhum outro físico da sua geração, e nenhum outro desde então, foi ao mesmo tempo um experimentador magistral e um teórico de ponta. Em escala de miniatura, os pequeninos pedaços de papel, e a análise do respectivo movimento, exemplificam esta cominação única de talentos.

Como todos os virtuosi, Fermi tinha um estilo próprio. Sua abordagem da Física não suportava oposição; nunca lhe ocorria que pudesse falhar na busca da solução de um problema. Os seus artigos e livros revelam desdém pelos ornamentos – revelam a preferência pela via mais direta para chegar a resposta, e não pela via intelectualmente mais elegante. Ao chegar nos limites da sua acuidade, Fermi completava a tarefa pela força bruta.

Para ilustrar esta abordagem, imaginemos que um físico queira determinar o volume de um corpo irregularmente conformado – o da Terra, por exemplo, que é ligeiramente piriforme. Sem alguma espécie de fórmula, qualquer pessoa pode se sentir bloqueada; há, porém diversas maneiras de conseguir uma delas. A consulta a um matemático é um caminho, mas encontrar um deles que tenha conhecimentos e interesse suficientes para ajudar é, usualmente, difícil. Outro caminho é fazer uma busca na literatura matemática, o que é demorado e possivelmente infrutífero, pois os modelos ideais que interessam aos matemáticos muitas vezes não estão de acordo com os corpos irregulares da natureza. Finalmente, o físico poderia considerar o abandono de todas as pesquisas a fim de deduzir uma fórmula a partir de princípios matemáticos básicos; porém, como é evidente, quem quer que se decidisse a dedicar grande período de tempo à geometria teórica jamais teria se tornado um físico2.

Uma outra maneira seria o físico fazer como Fermi teria feito – calcular numericamente o volume. Em lugar de se apoiar em uma fórmula, o cálculo envolveria a divisão mental do planeta em vários pequenos cubos, cada qual com um volume facilmente determinado pelo produto entre o comprimento, a largura e a altura; a adição das respostas destes problemas mais abordáveis (com o aumento do número de cubos aumentaria a exatidão do cálculo) levaria à estimativa final. Este método leva somente a uma solução aproximada, mas, como não depende de qualquer fórmula desconhecida, levará com certeza ao resultado desejado; era isto que importava a Fermi. Com a introdução, após a Segunda Guerra Mundial, dos computadores e, depois, das calculadoras portáteis, o cálculo numérico se tornou o procedimento padrão da Física.

A técnica de dividir problemas difíceis em problemas menores, mais abordáveis, aplica-se a muitos problemas além dos que se resolvem por cálculo numérico. Fermi era excepcional neste método prático. A fim de ensiná-lo aos seus alunos, desenvolveu um tipo de questão que ficou associado ao seu próprio nome. Um problema de Fermi tem um perfil característico. Ao se escutá-lo pela primeira vez não se tem nem mesmo a mais remota idéia sobre qual poderia ser sua resposta. E nota-se que a informação existente é muito pouca para se encontrar a solução. Porém, quando o problema for dividido em subproblemas, cada qual solúvel sem a ajuda de especialistas ou de livros de referência, pode-se fazer uma estimativa, de cabeça ou rabiscando em qualquer rascunho que pode estar bem próxima da solução exata.

Suponhamos que se queira determinar a circunferência da Terra sem fazer consulta a uma tabela. Vamos imaginar que se saiba a distância, cerca de cinco mil quilômetros, entre New York e Los Angeles, e que a diferença de tempo entre as duas costas oceânicas dos Estados Unidos é de três. Ora, três horas correspondem a um oitavo do dia, e um dia é o tempo necessário para o planeta completar um revolução. Portanto, a circunferência da Terra pode ser estimada como o produto de oito por cinco mil quilômetros, ou seja, quarenta mil quilômetros. No equador, a circunferência da Terra é, na realidade, 40 076km. Nas palavras de John Milton3:


tão fácil parece,
depois de encontrado; o que oculto, para a maioria,
parecia
impossível.


Os problemas de Fermi podem parecer-se com os enigmas estampados nas páginas de revistas de bordo de aeronaves, ou em outras publicações populares (dados três vasos com oito, cinco e três litros de capacidade, respectivamente, com se pode medir exatamente um litro?), mas são de gênero bem diferente. A resposta a um problema de Fermi, em contraste com a dos enigmas, não pode ser verificada por uma dedução exclusivamente lógica, e é sempre aproximada (a fim de determinar com precisão a circunferência da Terra é indispensável que o planeta seja realmente medido). Além disso, para resolver um problema de Fermi, é necessário ter o conhecimento de fatos não mencionados no enunciado do problema (em contraste com isso, a charada dos três vasos tem todas as informações necessárias para a sua resolução).

Estas diferenças indicam que os problemas de Fermi estão mais intimamente ligados ao mundo físico do que os enigmas matemáticos, que raramente têm qualquer coisa de prático a oferecer aos físicos. Nesta mesma linha, os problemas de Fermi lembram dilemas comuns que uma pessoa qualquer encontra diariamente ao longo da vida. Na realidade, os problemas de Fermi, e a forma de resolvê-los, não são apenas essenciais para a prática da Física, mas também são valiosos pela lição que oferecem na arte de viver.

Quantos afinadores de piano devem existir em Chicago? A natureza excêntrica desta pergunta, a impossibilidade de alguma resposta exata, e o fato de Fermi a ter proposto às suas turmas na Universidade de Chicago, elevaram-na ao status de mito. Não há uma solução padrão (e esta é a questão central), mas qualquer um pode fazer hipóteses que levam rapidamente a uma resposta aproximada. Uma delas: se a população da área metropolitana de Chicago for de três milhões de pessoas, se a família média for constituída por quatro pessoas, e se um terço de todas as famílias tiver um piano4, existem 250 000 na cidade. Se cada afinador afinar 4 pianos por dia, 250 dias por ano, totalizando 1 000 afinações por ano, devem existir 25 afinadores na cidade. A resposta não é exata; podem ser 10 ou 50. Mas, conforme uma consulta às páginas amarelas do catálogo de telefones, a resposta está definitivamente dentro do razoável.

A intenção de Fermi era mostrar que, embora no ponto de partida nem mesmo a ordem de grandeza da resposta seja conhecida, é possível avançar com base em hipóteses diferentes e assim chegar a estimativas que estão dentro do intervalo razoável da resposta. A razão desse efeito é a de os terem tendência a se cancelarem mutuamente numa seqüência de cálculos5. É possível admitir, acima, que apenas um sexto das famílias, e não um terço, tenha o seu próprio piano; mas então talvez os pianos tenham que ser afinados a cada cinco anos, e não a cada dez anos. Também é improvável que todos os erros de uma estimativa sejam por falta (ou por excesso), assim como é improvável que uma dada moeda mostre sempre cara (ou coroa), numa série de jogadas. A lei das probabilidades impõe que os desvios em relação às hipóteses corretas tendam a se compensar, de modo que os resultados finais convirjam para o número correto. Uma cautela essencial é a de evitar que um certo viés favoreça os desvios numa ou noutra direção.

Como é natural, os problemas de Fermi propostos aos físicos tratam de átomos e de moléculas, com mais freqüência do que de pianos. A fim de respondê-los, é necessário ter na memória algumas grandezas básicas, como o diâmetro aproximado de um átomo típico ou o número de moléculas de água numa colher de sopa cheia6. Com estas informações, é possível estimar, por exemplo, o desgaste do pneumático de um carro, numa revolução das rodas, em condições normais de tráfego. Vamos admitir que a banda de rodagem tenha a espessura de 1cm e que seja desgastada inteiramente em 60 000km. Se dividirmos 1cm pelo número de voltas feitas por um pneumático típico, com a sua circunferência típica, em 60 000km, a resposta é da ordem de grandeza de um diâmetro molecular.

Um outro problema de Fermi ilustra a imensidão do número de átomos e moléculas que nos rodeiam. O problema é o de provar um teorema denominado “o último suspiro de César” que afirma haver, em qualquer inspiração de qualquer pessoa, pelo menos uma molécula do ar que Júlio César expirou ao morrer. Sob o enunciado escondem-se uma restrição e diversas hipóteses. A restrição é a de o teorema só poder ser aproximadamente correto, pois se baseia em médias. Se uma pessoa inalar três ou quatro vezes, sem encontrar qualquer molécula do ar de César moribundo, não deve ficar desapontada; adiante, irá inalar diversas delas de uma só vez. Uma das hipóteses é a de não terem sido adicionadas moléculas de ar à atmosfera nos dois últimos milênios, nem terem sido tiradas de circulação outras moléculas de ar, em virtude de combinações; o que certamente não é rigorosamente correto. Também se admite que o último sopro de César tenha tido a possibilidade de misturar-se uniformemente com toda a atmosfera, o que também não é hipótese muito realista. Porém, se ambas as hipóteses forem aceitas, o teorema será verdadeiro e poderá ser aplicado também ao último suspiro de Átila, ou de Sócrates ou de Jesus.

O ponto focal da parábola é o de ser imenso o número de moléculas exaladas numa só respiração humana, e também muito grande o número de moléculas na atmosfera terrestre. A fim de provar o teorema, estima-se o volume total da atmosfera e depois divide-se este volume pelo volume de ar nos pulmões. A resposta é o número de pulmões cheios contidos na atmosfera, e este número é aproximadamente igual ao número de moléculas de ar contidas no último suspiro de César. Os dois números são redondamente iguais a um décimo do número de Avogadro, 6 x 1023, que é um número que cada físico tem de cor.

Problemas de Fermi mais momentosos podem ter relação com o programa de energia (o número de células solares necessárias para fornecer uma certa quantidade de eletricidade), ou com a qualidade do ambiente (a quantidade de chuva ácida provocada pela queima de carvão nos Estados Unidos), ou com a corrida armamentista. Os físicos prudentes – que procuram evitar falsas pistas e impasses – operam de acordo com um princípio há muito estabelecido: nunca principiar um cálculo até que se saiba a faixa de valores dentro da qual a resposta procurada deva estar (e, com igual importância, a faixa dentro da qual a resposta provavelmente não estará). Estes físicos abordam todos os problemas como se fossem problemas de Fermi, estimando a ordem de grandeza dos resultados antes de principiar uma investigação mais fundamentada.

Os físicos também usam problemas de Fermi para intercomunicarem-se. Quando se reúnem em anfiteatros de universidades, ou em centro de convenções, ou em restaurantes franceses7, quando descrevem novas experiências ou discutem problemas pouco conhecidos, muitas vezes fazem um exame geral da região, limitando, de forma numérica, a extensão do problema abordado. Os que estão acostumados a enfrentar problemas de Fermi, abordam a experiência, ou o problema proposto, como se lhes pertencessem, e demonstram a compreensão dos princípios físicos subjacentes mediante a realização de cálculos aproximados. Se a conversa for a respeito de um novo acelerador de partículas, os físicos podem fazer uma estimativa do campo magnético necessário; se a questão for a estrutura de um novo cristal, podem estimar o espaçamento entre os respectivos átomos. O objetivo é o de chegar a uma resposta razoável com o dispêndio do menor esforço. É este o espírito de independência que Fermi, possuindo-o em ampla medida, procurava estimular mediante problemas não convencionais.

Problemas a respeito de bombas atômicas, de afinadores de pianos, de pneumáticos de carros, de aceleradores de partículas e de estrutura cristalina têm pouca coisa em comum. Porém, a maneira como são respondidos é a mesma em cada caso e esta maneira pode ser adotada na resolução de problemas fora do campo da física. Quer o problema seja de culinária, de reparo de automóveis, ou de relações pessoais, existem dois tipos básicos de formuladores de respostas. Os de coração fraco buscam a autoridade – livros de referência, patrões, consultores especialistas, físicos, padres – enquanto os de mente independente mergulham no bom senso que possuem, e no conhecimento objetivo que qualquer um dispõe, fazem hipóteses razoáveis e deduzem as soluções originais, evidentemente aproximadas. Com toda certeza, seria tolice fazer neurocirurgia em casa; porém, desafios cotidianos como fazer um molho picante, substituir uma bomba de água, ou resolver uma pendenga familiar, podem ser solúveis com nada mais que um pouco de lógica, bom senso e paciência.

Nem todo mundo confia em abordagens informais. Por exemplo, algumas pessoas ficariam céticas diante da análise de Fermi sobre um ensaio de uma bomba de dois bilhões de dólares, feita com um pequenino punhado de papeluchos. Esta atitude revela menos, talvez, sobre o conhecimento que detêm do problema do que da atitude que assumem diante da vida.

Ao cabo, o valor de se abordarem problemas de ciência, ou da vida cotidiana, pela forma que Fermi adotava está na recompensa de se fazerem descobertas ou invenções independentes. Não importa que a descoberta seja tão importante quanto a determinação do rendimento de uma bomba atômica, ou tão insignificante quanto a estimativa do número de afinadores de pianos numa certa cidade. De certa forma, saber antecipadamente a resposta, ou deixar que uma outra pessoa a encontre, leva a uma frustração; rouba da pessoa o prazer e o orgulho que acompanha a criatividade e despoja o sujeito de uma experiência que, mais do que qualquer outra na vida, reforça a autoconfiança. A autoconfiança, por sua vez, é pré-requisito essencial para resolução dos problemas de Fermi. Assim, tratar dos dilemas pessoais como problemas de Fermi pode iniciar uma reação em cadeia e constituir um hábito que enriquece a vida.


1- Texto extraído na íntegra, com apenas algumas transformações de unidades e correções de tradução, de: TIPLER, P. Física. Horacio Macedo. 3ª edição. Rio de Janeiro, LTC, 1995. Vol. 1, págs. 10 a 12.

2- Trata-se de uma opinião pessoal do autor, portanto pode não ter nada de científico.

3- Poeta e professor de ciências inglês.

4- Para uma típica região metropolitana brasileira essa estimativa seria totalmente diferente, dada a má distribuição de renda da população.

5- Sinceramente não sei se o próprio Fermi concordaria com esta afirmação, muito menos é isto que a teoria dos erros ensina.

6- 1mol de H2O.

7- Ou, no caso dos físicos brasileiros, ao redor de uma mesa de bar mesmo, mas bem que poderia ser ao redor de uma mesa de chá.


Mais informações sobre o assunto:

Enrico Fermi, gênio e simplicidade

University of Maryland Fermi Problems Site

Order of Magnitude Physics

Purcell's numerology handout



PS: as notas de rodapé, obviamente, são minhas. :)

terça-feira, julho 24, 2007

Breve biografia de Bertrand Russell

Bertrand Russell (nascido em 18 de maio de 1872, no País de Gales): filósofo neo-empirista, lógico e matemático, dentre os maiores do século XX, Prêmio Nobel de Literatura em 1950.

“(...) Em sua Autobiografia (1962), olhando para toda sua vida, Bertrand Russell escreveu: ‘Acho que valeu à pena vivê-la e a reviveria alegremente se me fosse oferecida essa possibilidade’. Uma vida que, prossegue ele, foi dominada ‘por três paixões simples, mas de força irresistível: a sede de amor, a busca do conhecimento e uma imensa piedade pelos sofrimentos humanos’.

(...) Persuadido de que os valores não podem ser deduzidos logicamente do conhecimento, Russell foi tenaz defensor da liberdade do indivíduo contra toda ditadura e contra os abusos do poder. Sensível às injustiças sociais, Russell também foi convicto defensor do pacifismo.

Ele fez questão de escrever, falando sobre a Primeira Guerra Mundial: ‘Um efeito da guerra foi o de tirar-me a possibilidade de viver num mundo de abstrações. Eu olhava para os jovens que subiam nos trens militares para irem se fazer massacrar nas trincheiras por culpa da estupidez dos generais. Sentia uma intensa compreensão para com aqueles jovens e me sentia ligado ao mundo real, em um estranho matrimônio de dor. Todos os elevados pensamentos que tive sobre o mundo abstrato pareciam-me pequenos e vulgares diante dos terríveis sofrimentos que me circundavam. O mundo não humano tornava-se um refúgio ocasional, mas não uma pátria onde fosse possível construir uma moradia permanente’.

Com suas dilacerações e seus sofrimentos, amiúde inúteis, a vida irredutível e obstinada levou Russell do céu da matemática à terra dos homens sofredores. Adversário das injustiças do capitalismo não foi menos duro em relação aos métodos do bolchevismo *.

(...) Em 1954, apoiado por Einstein, promoveu uma campanha contra os armamentos atômicos.

(...) Pacifista coerente e desmistificador corajoso, Russell pagou pessoalmente pelos seus ideais. Foi processado várias vezes, esteve em prisão **, enfrentou a impopularidade, foi-lhe tirada a cátedra de filosofia no City College de Nova Iorque. (...) a Corte Suprema de Nova Iorque decretou o afastamento de Russell, cuja obra foi qualificada de ‘obscena, libidinosa, lasciva, depravada, erótica, mentirosa e desprovida de qualquer fibra moral’.

(...) Russell defendeu o amor livre. Causou-se quatro vezes e, evidentemente, divorciou-se três vezes. Em 1927, juntamente com a segunda mulher, Dora Winefred Black, chegou a fundar uma escola baseada em princípios educativos ‘revolucionários’: nela, os rapazes e moças liam aquilo que quisessem, nunca eram punidos, tomavam banho juntos e corriam nus pelo parque. A escola faliu.

(...) Na realidade, como recorda seu biógrafo A. Wood, Russell ‘combateu um estado de coisas cruel e absurdo, no qual os jovens eram mantidos deliberadamente na ignorância dos fatos sexuais, de modo que um rapaz podia acreditar que as mudanças de puberdade fossem sintomas de alguma pavorosa doença e uma moça podia se casar sem saber o que a esperava em sua noite de núpcias, no qual ensinava-se às mulheres a ver as relações sexuais não como uma fonte de alegria, mas como um penoso dever matrimonial, no qual a pruderie chega ao ponto de envolver em drapeados as pernas dos pianos, no qual o mistério criado artificialmente evocava uma curiosidade doentia e a hipocrisia se acompanhava de infidelidade, no qual não havia saída da infelicidade de um matrimônio fracassado senão através das complicadas provas legais do adultério e no qual um rígido código moral se acompanhava da tácita aceitação da prostituição.’

Russell dedicou sua vida a um mundo novo, no qual, como ele fazia questão de dizer, ‘o espírito criativo é vivaz, e em que a vida é uma aventura de alegria e de esperança (...), um mundo no qual o afeto tenha livre trânsito e onde a crueldade e a inveja tenha sido afugentados pela felicidade e pelo desenvolvimento livre e solto de todos aqueles instintos que constroem a vida e a enchem de delícias intelectuais. Esse mundo é possível: ele espera apenas que os homens queiram criá-lo.’

Russell também escreveu uma brilhante História da filosofia ocidental (4 vols., 1934), onde tenta mostrar que ‘os filósofos são resultado de seu meio social’. Bertrand Russell morreu*** na noite de 03 de fevereiro de 1970, uma segunda-feira.”

* Bolchevismo: sistema político dos bolcheviques.

Bolchevique: diz-se da ala majoritária do Partido Operário Social Democrata da Rússia que, com Lenin, liderou a revolução de 1917, e por fim passou a constituir-se no Partido Comunista da antiga União Soviética.

** Por quatro meses.

*** Mentalmente lúcido e atento, aos noventa e oito anos de idade, no País de Gales.

Texto extraído de: REALE, G.; ANTISERI, D.. História da Filosofia V. III. Editora Paulus, São Paulo, 1991.

"O processo que levou uma ameba a se transformar no homem é considerado obviamente um progresso pelos filósofos - se a ameba concordaria com essa opinião, não se sabe."

Bertrand Russell

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

“UM DECÁLOGO LIBERAL”(*)

por Bertrand Russell

Talvez a essência da concepção liberal possa ser resumida num novo decálogo, sem a intenção de substituir o antigo mas, tão só, de suplementá-lo. Os Dez Mandamentos que, como professor, eu gostaria de promulgar, poderiam ser enunciados da seguinte maneira:

1. Não te sentirás absolutamente certo de coisa alguma.

2. Não pensarás ser vantajoso progredir escondendo as provas, pois estas virão à luz inapelavelmente.

3. Não desencorajarás o raciocínio pois com ele vencerás.

4. Quando encontrares oposição, mesmo que seja a de teu marido ou de teus filhos, esforçar-te-ás por superá-la pela força dos argumentos e não pela da autoridade, pois uma vitória que depende da autoridade é irreal e ilusória.

5. Não respeitarás a autoridade de outros, pois encontrar-te-ás com autoridades contraditórias.

6. Não usarás do poder para suprimir opiniões que julgas perniciosas, pois se o fizeres as opiniões suprimir-te-ão.

7. Não temerás ser excêntrico em tuas opiniões pois toda e qualquer opinião hoje aceita já foi outrora excêntrica.

8. Encontrarás mais prazer na divergência inteligente do que na concordância passiva visto que, se apreciares devidamente a inteligência, a primeira implica um acordo mais profundo do que a segunda.

9. Serás escrupulosamente verdadeiro, mesmo que a verdade seja inconveniente, pois mais inconveniente será quando tentares ocultá-la.

10. Não sentirás inveja da felicidade daqueles que vivem num paraíso de insensatos, pois somente um insensato pensará que isso é felicidade.

(*) Este decálogo apareceu pela primeira vez no final do meu artigo “The Best Answer to Fanaticism: Liberalism”, em The New York Times Magazine, 16 de dezembro de 1951.

Extraído da Autobiografia de Bertrand Russell, vol. 3, pp. 71 e 72.
Fazer o que se ele pensou nisso bem antes de muita gente e ainda pôs em prática. :)

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Carnaval, a festa cósmica das danças

Desde as mais distantes eras, diferentes povos estabeleceram festas de grande alegria. Assim, encontram-se entre os egípcios as festas de Ísis e do touro Ápis; bacanais entre os gregos; lupercais e saturnais entre os romanos. Todas envolviam festins, danças e disfarces. Embora seja muito difícil caracterizar a origem verdadeira do Carnaval, parece que nossos atuais festejos estão intimamente associados às duas últimas festas romanas.
Logo após o início do Ano-Novo, os romanos, nas calendas de janeiro, comemoravam as saturnais, festas instituídas por Janus em memória do deus Saturno que, segundo a lenda, teria transmitido a arte da agricultura para os italianos. Durante as saturnais, as distinções sociais não eram levadas em consideração. Os escravos ocupavam os lugares de seus patrões, que os serviam à mesa. Nesse período não funcionavam os tribunais e as escolas. Os julgamentos eram suspensos e os condenados não podiam ser executados. Interrompia-se toda e qualquer hostilidade. Os escravos percorriam as ruas cantando e se divertindo na maior desordem. As casas eram lavadas e purificadas. As pessoas de um certo nível social preferiam se retirar para o campo, durante as saturnais, o que permitia ao povo celebrar com maior alegria esse período de liberdade.
Numa seqüência lógica aos excessos libertários, os romanos procediam à sua purificação pelas comemorações das lupercais, festas celebradas em 15 de fevereiro, em homenagem ao deus Pã, matador da loba que aleitara os irmãos Rômulo e Remo, fundadores de Roma, segundo a lenda.
Nesses festejos, celebrava-se o princípio da fecundidade. Durante as comemorações das lupercais, untados em sangue de cabra e lavados com leite, os lupercos nus, com uma pele de um bode aos ombros, saíam pelas ruas batendo nos pedestres com uma correia de couro. As mulheres grávidas saíam às ruas e se ofereciam às correadas, na esperança de escaparem das dores do parto. Por outro lado, as mulheres com desejo de ter um filho também procuravam ser atingidas pelos golpes das correias dos lupercos, na esperança de virem a engravidar.
Como todos esses festejos, que consistiam essencialmente em mascaradas, disfarces e danças, já estivessem de tal modo implantados nos costumes quando do surgimento do cristianismo, a Igreja só teve uma saída: adotou-os e ao mesmo tempo, procurou santificá-los.
De fato, o Carnaval parece ter tido sua origem nessas antigas comemorações pagãs, em geral de grande alegria e liberdade, que eram celebradas durante a passagem do ano e/ou com objetivos de anunciar a próxima chegada da primavera. Com efeito, Carnaval era o tempo de regozijo, que ia desde a Epifania até a Quarta-feira de Cinzas. Com o tempo, essa festa acabou limitada aos últimos dias que antecediam ao início da Quaresma, período de 40 dias que vai da quarta-feira de cinzas até o domingo de Páscoa, e durante os quais os católicos e ortodoxos fazem sua penitência.
O período carnavalesco oscilou e ainda oscila segundo as tradições de cada país. Assim, parece que ele se iniciou primitivamente na Idade Média, em 25 de dezembro, incluindo a festa de Natal, o dia do Ano-Novo e a Epifania (6 de janeiro). Mais tarde, passou a ser comemorado desde o dia de Reis até um dia antes das Cinzas. Em alguns lugares da Espanha, sua comemoração incluía a quarta-feira de Cinzas. Em alguns países, só se comemora na terça-feira, ao passo que no Brasil é festejado no sábado, domingo, segunda e terça-feira.
Na Bahia, comemora-se o Carnaval também na quinta-feira da terceira semana da Quaresma. Trata-se da micareta, festa popular carnavalesca que tem sua origem na Mi-carême.
Esses festejos de janeiro e fevereiro, ligados às antigas cerimônias pagãs de abertura do ano, foram associados, como já demonstraram os peritos em folclore, às festas cristãs. Não eram simples rituais desprovidos de significação mais profunda, como se poderia supor inicialmente. Na verdade, as festas populares cíclicas dos países cristãos, que serviam para abrir o ano e anunciar a vinda da primavera, estão todas elas intimamente associadas ao fenômeno astronômico do solstício de inverno, no Hemisfério Norte, de onde surgiram todas essas práticas. As igrejas católica e ortodoxa herdaram tais festas ou rituais do mundo pagão, que por seu lado, as teria recebido do Oriente. Assim, na realidade, todos os festejos cíclicos, como o próprio Carnaval estariam associados às regiões que apresentam as mesmas mudanças metereológicas. Ao contrário, em virtude da inversão das estações entre os hemisférios, as festas do Carnaval, comemoradas durante o inverno no Hemisfério Norte são celebradas, no Hemisfério Sul, em pleno verão.

Texto extraído de: MOURÃO, RONALDO R. DE F. O Livro de Ouro do Universo, Ediouro, Ri o de Janeiro, 2000, pp. 49-51.(*)

(*) Excelente livro de divulgação científica, pena que a revisão foi muito mal feita e por isso há vários problemas tipográficos.


Pois é, lendo a história acima vemos que a humanidade não evoluiu espiritualmente quase nada em 25 séculos, do jeito que as coisas andam não pode ter evoluído mesmo, por isso há alguns anos cheguei à conclusão que o carnaval é a melhor época para se ler livros, pois se fica em paz quando o resto do mundo vai para a esbórnia. Aproveitei este carnaval para devorar a Autobiografia de Bertrand Russell (três volumes) que demorou aproximadamente um ano para chegar em minhas mãos, sua leitura me foi recomendada por um físico da USP, o prof. Henrique Fleming, e agora a recomendo a todos que se dizem humanos.